O convívio do dragão e do monstro de três cabeças

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Dante Alighieri, em sua Divina Comédia, usava Cérbero, um monstrengo de três cabeças, com cauda de dragão, para representar o apetite insaciável em “Infernos dos Gulosos”.  A gula é um pecado recorrente na história da humanidade, sob quaisquer óticas.

Metaforicamente, Hitler e Stalin eram gulosos. Déspotas centralizadores, muito provavelmente pretendiam conduzir Alemanha e Rússia para um modelo de Estado como a China vem adotando nas últimas três décadas. É evidente (antes que critiquem minha comparação) que a forma como tal objetivo foi alcançado nessa última foi muito mais palatável, sem guerras e crimes contra a humanidade. O governo chinês soube “manusear” um capitalismo-estatal- unipartidário, um “bicho” de três cabeças, onde as decisões são tomadas por um sistema político de perfil pouco (?) democrático.

Como gosto de dizer, a China não é um país emergente; ela reemergiu. Por quê? Entre os séculos V e XV, os chineses se destacaram em várias frentes, como produção agrícola, invenções (pólvora, bússola, porcelana) e até as navegações. Lembremo-nos que muitos historiadores classificam a China como uma potência marítima até aquele momento, pois foi somente na Idade Contemporânea que o país perdeu a supremacia para os europeus.

Desde o ocaso do século XX, a China vem sendo a menina dos olhos dos mercados. Tal interesse aumentou exponencialmente com a crise global de 2008, quando muitos analistas (me excluo) advogavam a tese do decoupling (descolamento dos emergentes em relação aos países centrais), tese essa que se mostrou equivocada, vide o desempenho de Brasil e Rússia, além das desacelerações da própria China e da Índia.

Com crescimento de mais de 10% no PIB, o gigante asiático desempenhou um papel de proeminência na economia mundial, desde 1990. Exportando suas quinquilharias a preços de banana, por conta de uma mão-de- obra extremamente barata e um câmbio favorável, ajudou a manter a inflação em patamares baixos no mundo todo, sobretudo nos EUA, que vinham trabalhando com uma política monetária frouxa, reação do FED aos atentados de 11 de setembro de 2001. Ademais, com sua cisma por crescimento, ajudou a catapultar os preços das commodities, colaborando para o ótimo desempenho de países como o Brasil.

Desde 2015, no entanto, uma pergunta atormenta a todos:                                                               A economia chinesa vai entrar em colapso, aquilo que os economistas chamam de hard landing ou haverá o chamado pouso suave?

Além de estudar a economia local por dever de ofício, enquanto professor procuro, igualmente, acompanhar a economia chinesa com bastante atenção. Não sou especialista, mas interajo com colegas que são e leio muito sobre o que lá acontece. Apesar de alguns desconfiarem que as estatísticas possam não ser tão fidedignas, até hoje nunca me senti desconfortável com algum tipo de manipulação, à lá Argentina dos Kirchner ou Venezuela de Maduro. Isso posto, minha percepção em relação àquela pergunta aí de cima é que não verificaremos o pouso forçado.

A meu juízo, o que ocorreu nos últimos dois anos foi uma salutar mudança de modelo de crescimento; um rebalanceamento de estratégia macroeconômica. O capitalismo (uma das três cabeças) é cíclico e, portanto, precisará de uma fase de acomodação que, no entanto, não enseja uma retração abrupta. Um redirecionamento de ênfase na economia estado- interventora (outra cabeça), agora focando mais no consumo doméstico, explica essa guinada “suave”. Isso não significa que o país abandonará seu viés exportador e também de consumidor voraz de commodities. Contudo, o “mix” de agora me parece bastante saudável, pois pavimentará um crescimento mais “normal” nos próximos dez anos, entre 5% e 6%.

Não quero dizer que não haja riscos e notícias ruins. O FMI recentemente alertou para a elevada proporção de endividamento corporativo. A taxa de câmbio desajustada é um problema importante, bem como o “complexo” shadow banking, que pode trazer alguma dor de cabeça em breve. Até mesmo uma eventual bolha imobiliária não pode ser desconsiderada. Todavia, minha avaliação é de que o próprio governo chinês está estimulando um menor crescimento, para fazer aumentar a relação consumo/PIB, que se encontra, hoje em dia, em torno de 33%. Outro aspecto é que, no PIB do 1º trimestre de 2016, os serviços participaram com 57%, o que já sinaliza uma mudança importante. Assim sendo, penso que as autoridades saberão conduzir essa sintonia fina, mesmo sendo tarefa desafiadora.

Provavelmente, Hitler e Stalin deram de ombros para o “Inferno dos Gulosos”. Criaram seus próprios infernos, cada um de uma forma, um contra o outro. Os chineses, nesse sentido, foram mais sábios. Perceberam que o dragão conviveria com Cérbero e que, dessa convivência, reemergiriam para uma nova era.

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