O cão épico

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No final do século passado, o índice de ações Dow Jones, o mais famoso benchmark da bolsa de valores de NY, atingiu a casa dos 8.000 pontos. Naquela oportunidade, um colega de trabalho anunciou que estava mudando o nome do seu cão para “Eight Thousand”. Também ali, o então presidente do FED, Alan Greenspan, alertava os mercados para os preços dos ativos que, segundo ele, estariam exagerados. Greenspan cunhou a expressão “exuberância irracional”, que ganhou o mundo. Poucos anos depois, houve o estouro da bolha das pontocom.

Mercados são idiossincráticos por essência. Agem de forma própria, muitas vezes descolados dos fundamentos macroeconômicos e das próprias empresas. Se não fosse assim, simplesmente não existiriam, pois (para que existam) é necessário que haja opiniões divergentes: uns desejam comprar outros querem vender.

Nos dias de hoje, o índice Dow Jones está em torno de 22 mil pontos, quase 200% acima daquela marca descrita. Já o índice S&P500, mais abrangente, bateu 2.500 pontos, ultrapassando mais um milestone.

De uns tempos para cá, dadas as constantes altas dos índices acionários globais, os mercados passaram a marcar objetivos para os índices, as ditas milestones. Tenho lido que os mais animados investidores estabeleceram 30 mil pontos para o Dow Jones como a “milestone épica”. Se for observar, falta pouco mais de 30% de alta para esse alvo se concretizar.

Este texto não tem intenção de sugerir compra ou venda, pois uma das tarefas mais complexas para um analista de mercado é acertar o timing de suas previsões. No limite, todos acertariam, se o espaço de tempo para a análise for infinito. Assim, há uma espécie de consenso de que as análises tenham “prazo de validade” de um ano.

Olhando o que vem ocorrendo, há, desde a crise de 2008, uma política monetária ultra expansionista promovida por todos os bancos centrais desenvolvidos. Essa esparrama de moeda no mundo fez com que os mercados de risco ganhassem uma atratividade poucas vezes vista, catapultando os índices. Portanto, a alta extraordinária das ações, dessa feita, não se dá pelos mesmos motivos da década de 1990 (crescimento da economia global próximo a 5% a.a., o fenômeno dos emergentes, que inseriram bilhões de consumidores e ganhos de produtividade acima da média). O que quero dizer é que a mola propulsora, agora, é o baixíssimo custo de oportunidade, pois os juros estão próximos de zero faz tempo e a inflação permanece muito baixa.

Quando a crise de 2008 ocorreu, vários analistas vieram defender os fundamentos, amaldiçoando o “oba-oba”. Como gosto de dizer, “depois que a ponte cai os engenheiros de obra feita aparecem para colocar defeito no projeto”. Em outras palavras, no limite, é melhor errar com todo mundo e, se der, tente se eximir depois.

Atentando para o momento presente, também agora os investidores dizem que os paradigmas mudaram. Só para citar, li, recentemente, um artigo de um analista americano afirmando que analisar ações via múltiplo P/L é inadequado. Será mesmo? Se observarmos, existem ações de empresas de tecnologia negociando com P/Ls próximos aos 100 anos. Isso é razoável? Comprar uma ação para ter o payback daqui a um século?

Como professor da disciplina de valuation, procuro salientar que múltiplos precisam fazer sentido com o valor da empresa pelo fluxo de caixa. A evidência empírica aponta que múltiplos acima de 20/25 anos são exagerados e devem sinalizar cautela.

Todavia, se a motivação para comprar ações está descolada dos fundamentos empresariais, e colada no custo de oportunidade dos dólares, quando a reversão ocorrerá?

Os mais otimistas dizem que essa não ocorrerá tão cedo, pois, com a inflação baixa (aquém das metas dos BCs), não há motivos para elevação de juros. Já os mais cautelosos advogam a tese de que o estopim para uma onda de realizações não se dará necessariamente pela mudança na política monetária, mas por algum evento extemporâneo (guerra, terror, mudança política no FED etc…) que afetaria as expectativas. Pode ser ainda algo mais imponderável (vejam o que ocorreu com a recente decisão das autoridades chinesas em relação às corretoras de criptomoedas, que derrubou as cotações da bitcoin).

Como salientei acima, não estou aqui para sugerir compra ou venda. Só pretendo enfatizar que os índices acionários americanos podem estar sobrevalorizados, e isso recomenda prudência redobrada nas próximas decisões. O cão “milestone epic” pode demorar mais do que se imagina.

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